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7 de dezembro de 2007

Os dois sentidos da menoridade

Maria Clara Lucchetti Bingemer*

Nunca pensaria em sair desta maneira do anonimato que sempre foi sua morada. Jamais sequer sonhou que pudesse ser notícia de jornal. Exilada do mundo da lei, da ordem, dos direitos, ela seguia vida afora, empurrada pela desgraça e pelo anonimato. A pobreza, o abandono, a dificuldade eram seu pão de cada dia. A boca faminta não conseguia alimentar o corpo de menina começando a virar moça de forma abrupta e tremenda.
A fome, a pobreza, a errância a fizeram ir parar no mundo dos furtos. Estendeu a mão e pegou. Depois saiu correndo. Magrinha e ágil ia mais rápido. Até que um dia foi pega, autuada e presa. Além de ser surpreendida em furto, estava sem carteira de identidade. Era apenas uma menina sem nome, sem sobrenome, sem direitos. Ela, que pensava não haver mais sofrimento do que aquele que já enfrentava diariamente, descobriu que tudo ainda podia ser e ficar muito pior.
Em Abaetetuba, lugar perdido no mapa do Pará, foi trancafiada em uma cela com mais de 20 homens. Ali ficou por mais de um mês, segundo depoimento dos próprios detentos. Uma denúncia ao Conselho Tutelar trouxe seu caso à luz. O Conselho acionou o Ministério Público e o Juizado da Infância e da Adolescência. Sua triste história saiu do anonimato e da escuridão dos porões da carceragem masculina para ganhar a mídia e horrorizar o país.
Em Abaetetuba, como em muitas outras cidades brasileiras, não há carceragem feminina. Não havia, portanto, lugar onde colocar aquela menina presa em flagrante e que ainda por cima andava sem documentos. A solução foi jogá-la no presídio masculino. Isto, segundo a polícia civil, é o procedimento "normal". Assim como ela, outras passaram e ainda passarão por esta situação. Durante mais de um mês, serviu de pasto à libido desenfreada dos presos, que só não se serviam de seu corpo às quintas feiras, quando recebiam a visita das esposas.
Ao contrário do que acontece com outras crianças, para ela a sexta feira não anunciava o fim de semana de lazer e repouso. Mas sim o início de mais uma semana de dor, humilhação, violência e agressão. Contrariando a ética das prisões, segundo a qual estuprador não sobrevive nos cárceres, todos se uniram contra ela. Examinada, apresentou escoriações em várias partes do corpo e evidências de abuso sexual.
Em ridícula tentativa de mascarar a gravidade do ocorrido, o delegado geral da Polícia Civil do Pará, Raimundo Benassully, declarou ser a menor débil mental, por não ter declarado imediatamente sua menoridade. Felizmente, a governadora do estado retrucou que não há justificativa para o que aconteceu. E o presidente da OAB chamou o caso de "hediondo e intolerável".
Embora pobre, sem documentos e culpada de furto, ela é uma cidadã. Maior ou menor de idade, tem direitos e a lei existe para protegê-la. Sendo menor, ainda mais. O Estado tem obrigação de zelar pela integridade física e mental de suas crianças e jovens. Submeter uma menina que tem entre 15 e 17 anos a tamanho constrangimento é repugnante sob todos os pontos de vista.
Segundo o dicionário, "menor" é a pessoa que ainda não atingiu a maioridade, ou seja, a idade de 21 anos, quando pode ser plenamente responsável por seus atos. Mas há outra definição de "menor": hierarquicamente inferior, subordinado, subalterno. Ela se enquadra em todas as categorias: pela pouca idade, pela inferioridade e a subordinação que merecem sua condição e seu sexo: é pobre e, além de tudo, é mulher.
O sistema penitenciário inadequado e iníquo completou o quadro. Jogou-a na mesma cela que 20 presos homens. Vivendo em condições subumanas, estes violaram repetida e cruelmente sua fragilidade. Para sempre ela levará as marcas dessa dupla menoridade cronológica e antropológica. Que pelo menos seu sacrifício sirva para que o Brasil preste mais atenção ao que está fazendo com seu futuro ao tratar assim suas crianças e seus jovens


* teóloga, professora e decana do Centro de Teologia e Ciências Humanas da PUC-Rio

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7 de dezembro de 2007

Os dois sentidos da menoridade

Maria Clara Lucchetti Bingemer*

Nunca pensaria em sair desta maneira do anonimato que sempre foi sua morada. Jamais sequer sonhou que pudesse ser notícia de jornal. Exilada do mundo da lei, da ordem, dos direitos, ela seguia vida afora, empurrada pela desgraça e pelo anonimato. A pobreza, o abandono, a dificuldade eram seu pão de cada dia. A boca faminta não conseguia alimentar o corpo de menina começando a virar moça de forma abrupta e tremenda.
A fome, a pobreza, a errância a fizeram ir parar no mundo dos furtos. Estendeu a mão e pegou. Depois saiu correndo. Magrinha e ágil ia mais rápido. Até que um dia foi pega, autuada e presa. Além de ser surpreendida em furto, estava sem carteira de identidade. Era apenas uma menina sem nome, sem sobrenome, sem direitos. Ela, que pensava não haver mais sofrimento do que aquele que já enfrentava diariamente, descobriu que tudo ainda podia ser e ficar muito pior.
Em Abaetetuba, lugar perdido no mapa do Pará, foi trancafiada em uma cela com mais de 20 homens. Ali ficou por mais de um mês, segundo depoimento dos próprios detentos. Uma denúncia ao Conselho Tutelar trouxe seu caso à luz. O Conselho acionou o Ministério Público e o Juizado da Infância e da Adolescência. Sua triste história saiu do anonimato e da escuridão dos porões da carceragem masculina para ganhar a mídia e horrorizar o país.
Em Abaetetuba, como em muitas outras cidades brasileiras, não há carceragem feminina. Não havia, portanto, lugar onde colocar aquela menina presa em flagrante e que ainda por cima andava sem documentos. A solução foi jogá-la no presídio masculino. Isto, segundo a polícia civil, é o procedimento "normal". Assim como ela, outras passaram e ainda passarão por esta situação. Durante mais de um mês, serviu de pasto à libido desenfreada dos presos, que só não se serviam de seu corpo às quintas feiras, quando recebiam a visita das esposas.
Ao contrário do que acontece com outras crianças, para ela a sexta feira não anunciava o fim de semana de lazer e repouso. Mas sim o início de mais uma semana de dor, humilhação, violência e agressão. Contrariando a ética das prisões, segundo a qual estuprador não sobrevive nos cárceres, todos se uniram contra ela. Examinada, apresentou escoriações em várias partes do corpo e evidências de abuso sexual.
Em ridícula tentativa de mascarar a gravidade do ocorrido, o delegado geral da Polícia Civil do Pará, Raimundo Benassully, declarou ser a menor débil mental, por não ter declarado imediatamente sua menoridade. Felizmente, a governadora do estado retrucou que não há justificativa para o que aconteceu. E o presidente da OAB chamou o caso de "hediondo e intolerável".
Embora pobre, sem documentos e culpada de furto, ela é uma cidadã. Maior ou menor de idade, tem direitos e a lei existe para protegê-la. Sendo menor, ainda mais. O Estado tem obrigação de zelar pela integridade física e mental de suas crianças e jovens. Submeter uma menina que tem entre 15 e 17 anos a tamanho constrangimento é repugnante sob todos os pontos de vista.
Segundo o dicionário, "menor" é a pessoa que ainda não atingiu a maioridade, ou seja, a idade de 21 anos, quando pode ser plenamente responsável por seus atos. Mas há outra definição de "menor": hierarquicamente inferior, subordinado, subalterno. Ela se enquadra em todas as categorias: pela pouca idade, pela inferioridade e a subordinação que merecem sua condição e seu sexo: é pobre e, além de tudo, é mulher.
O sistema penitenciário inadequado e iníquo completou o quadro. Jogou-a na mesma cela que 20 presos homens. Vivendo em condições subumanas, estes violaram repetida e cruelmente sua fragilidade. Para sempre ela levará as marcas dessa dupla menoridade cronológica e antropológica. Que pelo menos seu sacrifício sirva para que o Brasil preste mais atenção ao que está fazendo com seu futuro ao tratar assim suas crianças e seus jovens


* teóloga, professora e decana do Centro de Teologia e Ciências Humanas da PUC-Rio

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